Academia Internacional de Cinema (AIC)

Entrevista com o compositor Gabriel Yared

Entrevista: Cecilia Muylaert

Crédito foto: Laurent Koffel

Compositor da trilha sonora do filme Judy, estrelado por Renée Zellweger e com direção de Rupert Goold, que estréia esta semana no Brasil, Gabriel Yared compôs as músicas de O paciente inglês, que lhe valeu o Oscar de Melhor Música, O talentoso Ripley, A vida dos outros, Betty Blue, dentre tantos outros filmes icônicos. Ele me recebeu em seu charmoso apartamento em Paris para uma entrevista exclusiva para a Academia Internacional de Cinema (AIC). Yared, sempre com um entusiasmo contagiante,  compartilhou comigo, ao longo de duas tardes, diversos momentos importantes da sua trajetória profissional, sua visão singular quanto ao papel da música no cinema, a influência de Godard no seu processo criativo e a importância da música popular brasileira na sua obra. Detentor dos mais prestigiosos prêmios internacionais de música para cinema, Yared recebeu recentemente, em Viena, o Max Steiner Film Music Achievement Award.

Suspenso entre duas temporalidades distintas, a das superproduções hollywoodianas e a da grande tradição do cinema europeu, Yared nos dá um testemunho das enormes possibilidades e desafios que atravessam a relação entre música e imagem.

Pode nos contar um pouco sobre o seu trabalho no filme Judy? 

O que mais me atraiu em Judy foi a história dramática da grande estrela que foi Judy Garland e de sua trágica morte. Ela foi uma atriz lendária e uma criança prodígio, que pertencia à tradição hollywoodiana que a mantinha, por contrato, presa a um estúdio como a MGM. Com este projeto eu aprendi bastante sobre a Hollywood dos anos 30 e 40, como se podia criar uma estrela ainda muito jovem, mas já vulnerável a se tornar totalmente ostracizada. O filme tem diversas canções interpretadas pela própria Renée Zellweger e a minha música cobre cerca de 40 minutos do filme. É como se as canções refletissem a imagem externa que Judy projetava, que é contrabalançada pela minha música, que expressa o seu monólogo interior, seus sentimentos, angústias, seus medos e sua solidão. 

Você morou no Brasil por dois anos durante sua juventude… 

Quando eu tinha 18 anos, conheci, por acaso, no Líbano, Augusto Marzagão, fundador e diretor do Festival Internacional da Canção, um grande evento anual que ocorria no Maracanãzinho, no Rio de Janeiro.

Ele me ouviu tocando e me convidou para representar o Líbano no Festival de 1971; tão logo cheguei no Brasil, senti que era o meu país; foi muito estranho.

Quando o festival acabou, eu não queria ir embora, então comecei a procurar trabalhos, qualquer coisa para fazer. Aí eu encontrei o Mauro Furtado, dono do bar Number One, que ficava em Ipanema; ele me ofereceu uma banda com a qual eu poderia tocar todas as noites; então eu compunha durante o dia e à noite eu tocava. Conheci músicos incríveis como Ivan Lins – pra quem eu produzi um álbum – Paulo Moura, Milton Nascimento, Chico Buarque, Jorge Ben… Acabei morando dois anos no Brasil.

Até hoje, a minha música tem uma influência brasileira muito forte, como, por exemplo, a que compus para Betty Blue, ou a peça para violão que fiz para o filme Cidade dos Anjos.

A música brasileira, especialmente a Bossa Nova, tem lindas melodias e harmonias sofisticadas; tem alguma coisa nela que sempre flui, nunca como o esperado. É muito elegante e musical.

 

 

Sua música é muito eclética e é atravessada por diversas influências; como você descreveria o seu estilo?  

Uma metáfora: numa árvore, nenhuma folha se parece com a outra, embora elas todas pertençam à mesma árvore. Um compositor tem que se vestir de acordo com o filme, os diálogos, muitas coisas; mas por trás deste disfarce, você sente que tem alguém ali. Somos, dentro de nós, tudo que queremos, tudo que amamos. Quando eu escrevo, eu sou brasileiro, da mesma forma que quando componho um tango, eu sou argentino, ou quando componho uma música que soa húngara, eu sou húngaro. Isto é estilo, porque estilo não é repetir sempre a mesma coisa; é às vezes se esconder por trás daquilo que lhe foi pedido. Não sou a pessoa mais indicada para falar sobre mim e meu estilo, mas em minha música você sempre vai encontrar uma melodia muito pessoal, harmonias sofisticadas e uma estrutura bem definida. 

Pode nos falar um pouco sobre o seu processo de composição musical para um filme? 

Prefiro começar a compor antes da filmagem. Começo a pensar sobre a música logo após ler o roteiro e conversar com o diretor. Aí eu começo a compor uma peça em homenagem ao filme que “ainda não existe”. A partir da conversa com o diretor e da leitura do roteiro, eu componho, então, uma música que existe por si só, por ela mesma, que tem a sua própria estrutura, independentemente das imagens.

A questão da música para filme é que se você começa a compor diretamente para as imagens, sem antes conceber uma peça para o filme como um todo, você não terá os ingredientes necessários para fazê-lo, porque a música para filme tende a ser atomizada, ela é muito esparsa. Você precisa ter uma unidade, um todo, que possa ser destilada ao longo do filme. 

Sauve qui peut (la vie) (1980), de Jean-Luc Godard, foi o seu primeiro trabalho no cinema. Que influência teve Godard na sua singular abordagem de composição  musical para cinema? 

Sauve qui peut (la vie) praticamente formou minha compreensão de composição musical para cinema. Godard me contou a história,  o enredo do filme, e me disse que não era necessário ver as imagens. Ele simplesmente me deu oito compassos de uma ópera de Ponchielli, La Gioconda, e propôs que eu trabalhasse em torno do tema; variando e desenvolvendo-o, mesmo “escondendo” o tema quando necessário. Eu compus a música para sintetizadores – o que era bastante moderno para a época – e a gravei em camadas. Durante as gravações, Godard vinha e ficava assistindo – ele ficava lá e não falava nada, ele apenas escutava, escutava, escutava… Quando eu entreguei-lhe  a gravação finalizada, ele pegou toda a música e editou as cenas para a música. E quando a música tinha de ser cortada, ele cortava daquela maneira “bem Godard”, ou seja, abruptamente. A música ficou em total osmose com o filme – ela é o resultado de uma mistura de músicas originais minhas e de músicas inspiradas por Ponchielli, nas quais às vezes você consegue identificar o tema, às vezes não.     

Você fala da importância de dar “espaço” para a música. Pode falar um pouco sobre isso? 

Veja como Fellini dava espaço à musica do Nino Rota. O mesmo acontecia com Sergio Leone e Ennio Morricone, Alfred Hitchcock e Bernard Hermann. Estes diretores davam um espaço real para a música, que então adquiria uma verdadeira personalidade e assumia o lugar de um verdadeiro personagem na história. Para se atingir este nível de cumplicidade artística, você tem que ter uma relação de muito entendimento com o diretor. Eu nunca tive que pedir para o Anthony Minghella me dar espaço; ele simplesmente dizia “vá em frente, crie”. Mesma coisa com Jean-Jacques Beineix em Betty Blue – toda a música foi composta antes das filmagens.  Eu mandei meus demos para a equipe toda: o produtor, diretor, diretor de fotografia, atores, todos eles conheciam a música e a colocaram para tocar durante as filmagens. Então quando o filme saiu, as pessoas falaram “Nossa, como as imagens e a música estão em harmonia!”. Mas isso aconteceu porque a música foi composta – compor significa “por junto” – com o filme.

Muitos diretores usam músicas ditas “temporárias” (temp track) como fonte de inspiração; durante as filmagens e o processo de edição são utilizadas trilhas sonoras tiradas de diversas fontes, como, por exemplo, músicas de outros filmes etc. e as mostram para o compositor como referência para ele criar a sua própria trilha original. O que acha disso? 

Quando estava trabalhando no Paciente Inglês, eu mandava para o editor, o maravilhoso Walter Murch, demos durante o processo de edição para que ele pudesse adicioná-los às imagens. Ele nunca editava as imagens com qualquer música “temporária”; editores hoje em dia estão habituados a editar as imagens com um temp track em mente, e o problema disso é que eles se acostumam com ela, se viciam nela, e depois têm dificuldade de se abrir para um compositor que chega ao projeto com suas próprias ideias. Então, eu mandava demos para o Walter para ajudá-lo durante as edições; e olha que isso era em 1996, quando a tecnologia não era tão avançada e os demos soavam de forma amadora, se comparada ao que temos atualmente. Mas Walter os usava assim mesmo. Mesma coisa com O Talentoso Ripley, mesma coisa com Cold Mountain.

Ter a música tocada durante as filmagens e o processo de edição pode ser muito importante. Uma nova música, em vez do temp track, pode abrir o horizonte de um diretor e apresentar-lhe novas maneiras de pensar as imagens e os sons; mas para isso acontecer, para tirá-lo de sua zona de conforto, ele precisa estar ciente do quão importante é contratar um compositor nas fases iniciais de um projeto, porque um compositor é essencial ao processo todo. Fico feliz que atualmente compositores como Hans Zimmer estejam adotando esta abordagem – eu comecei assim 40 anos atrás.    

Você costuma dizer que suas músicas para filme existem independentemente das imagens; isso significaria que, em sua essência, a música é desprovida de qualquer imagem, ou, ao contrário, que há sempre na música uma potencial criação de imagens? 

Acho que a música para filme, que está se tornando a nova música clássica contemporânea, deve mesmo ser tocada em salas de concerto. Mas para isso acontecer, ela deve ser uma peça de qualidade que exista por si mesma, que possa ser tocada sem imagens, pois o poder da música é justamente o poder de despertar imagens interiores nos ouvintes. Então eu sempre falo para o meu público antes de um concerto: “Vocês sabem que  há imagens por trás destas músicas, mas agora, depois de servir às imagens, a música retorna à sua essência, que é ser música. Então fechem seus olhos e criem suas próprias imagens, seu próprio filme; esta é a razão deste concerto”. Relaciono a música para filme com a música para ballet, que foi a revolução musical mais importante do início do século passado; Debussy, Ravel e Stravinsky revolucionaram completamente a música, como acontece atualmente na música para cinema. Ao mesmo tempo em se vê as imagens, recebe-se a música de forma subliminar. Tenho sempre consciência disto, quer esteja compondo para um filme, uma ópera, uma peça de concerto, ou mesmo para um comercial de 15 segundos.   

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